o dia em que eu vi um ouriço pela primeira vez
foi primeiro de julho de dois mil e quinze
a terra teve um segundo a mais
eu queria ter te conhecido neste dia
teria sido melhor do que narrou Frank O’hara
em uma coca-cola com você
mas eu não tomaria refrigerante
prepararia o lençol
decoraria o canto dos pássaros reconhecíveis
da sacada de casa e pediríamos uma pizza
revistaríamos suas músicas prediletas
sua bússola
teríamos uma cartografia afetiva de quem é
você, afinal, gosta de Cartola
gostamos
o pé no samba, com sede
dividimos, além do passo sempre em falso
a vontade confessa de ter filhos
exceto pelo fato de que não admiti
eu tenho um sono para dividir com você
as malas para desfazer na sua sala
enquanto a gente conta
quantos anos faz que
a gente se viu pela primeira vez
se juntando e colando
envelopando-se embaixo das cobertas
feito caco esparramado
no chão
esculpindo nosso próprio relógio
dentro do quarto
eu ficaria de sapatos molhados o dia inteiro
aconteceu de eu ter um apaixonamento hoje pela manhã
mesmo blindada
perdi o voo
só para ler este poema debaixo para cima

qual é a estação de metrô mais próxima?

cidade tatuada
quadro a quadro
rostos crochetados com concreto e tinta
sabe quando uma flor se despedaça e é a única do buquê a cair
sabe quando todas fazem seu papel no palco muito bem
sabe quando os talheres encolhidos ao lado da louça de prata do século dezenove embaralham o sabor dos próprios talheres mastigáveis e com gosto de texto do Jonathan Swift
sabe o gol que o Barbosa não pegou
sabe a menina esquecida do apartamento catorze
sabe a janela que não abre nem com lubrificante
sabe a porta que dá para o jardim
sabe os cantos estrategicamente montados de nossas fotos
para sobreviver na cidade é preciso mais que amor e uma máquina fotográfica
é preciso saber por onde passar
e qual porta abrir
e não passar batom
e carregar a faca
e sintonizar na melhor rádio
e qual guia escolher
e controlar os quadris
essa melancolia calcificada nos meus passos em falso
dançarina medíocre
na ponta dos pés

para-ler-debaixo-para-cima

e foram felizes para sempre
os cineastas, os artistas, os afobados, os ansiosos
os escritores, os advogados, os filólogos, os dicionaristas
os jornalistas [até]
os pés vermelhos
os cansados
os meia-boca, os sensatos
os cretinos, os palhaços, os insensíveis [também]
os gaúchos, os pernambucanos, os cariocas, 
os malandros, os sinceros, os preguiçosos
os estiletes
Todos dispensaram o faz de conta
um dia em que
era uma vez

medo de altura

há que ser ingênuo 
para acreditar nas oito maravilhas do mundo antigo
primeiro porque são oito e não sete
e nada que não tenha sete ou setenta 
pode ser associado à verdade
segundo porque constam nessa lista de historiadores otimistas
os jardins suspensos da Babilônia
quem é que
sabendo que as flores murcham e as árvores têm saudades de casa
construiria um protótipo de passado para o futuro 
a arca de noé das plantas
alameda de aloés
vivenda de buganvílias 
jasmines e lótus
mantido vivo pelo sistema de irrigação mais moderno 
que um engenheiro que ainda não sabia 
o que um engenheiro fazia 
poderia ter feito 
no meio de aonde a água não quer chegar?
todo o sistema só pode ter sido 
abastecido pelas lágrimas
de alegria ou de tristeza, você escolhe
da mulher que estava presa no presente

isso me faz acreditar que 
fôssemos súditos de Nabucodonosor II 
ofereceríamos os préstimos de Calvino 
Marco Polos em marcha à ré 
atravessaríamos o mundo para percorrê-las todas
maravilha a maravilha 
invisíveis que somos
se soubéssemos o caminho

ao fim de cada viagem
estaríamos a salvo 
nas páginas viradas de um livro que a gente ainda não inventou
ou nas linhas que desenhei no mapa 
sobre o cardápio de pizzas delivery
tentei ligar, mas eles estão em férias
ou sobre a lista telefônica e as variações imperceptíveis 
dos sobrenomes de imigrantes da última guerra 
ou nas redações intituladas minhas férias
presas em algum caderno da quinta série
estaríamos a salvo

mas não é isso que acontece quando você tem medo de altura
a planta morta agoniza pendurada no teto
um capuchinho tímido e comestível
não serve nem para enfeitar nem para matar a fome
tão murcha que sofre porque você não olha para cima
você não é capaz de olhar para cima
e eu não posso dizer que isso é culpa do seu medo de altura
isso não faz sentido dentro de casa 
porque seus olhos
não estavam lá quando te visitei pela última vez
mas seus pés e mãos tateavam o chão mesmo com você 
irritante e insistentemente em pé 
transparecendo a serenidade do pássaro 
que avista a pista de pouso quilômetros antes 
de saber que precisará comer

só somos capazes de ter medo do que enxergamos
por isso os cegos são as pessoas mais corajosas que conheço
eu sei que você não sabe onde fica o futuro
você estuda história
cheguei de viagem ontem tão cansado 
pelo que soube que aconteceria
a previsibilidade não assusta mais
adianta eu te perguntar
o que faremos quando a cavalaria passar
quando for tão escuro que não distinguiremos mais silhuetas?

sou um personagem mudo e analfabeto num conto sem narrador
só me veem em terceira pessoa
nobody knows about us
but you are the horse
com a gestação mais longa que se tem notícia sobre a terra
e a possibilidade de se tornar cônsul
somos o caminhão do exército que carrega carga viva
exceto pelo fato de que meus cavalos estão todos mortos
nobody knows about us

uva verde

fiz um inventário das dobras da minha infância
tabulei sapatos molhados
e uma parreira prestes a cair
há um mar revolto embaixo das minhas unhas sujas de barro

e na árvore mais bonita do parque
um flamboyant estratosférico
abriga uma corda pendurada no galho mais alto
não sei se pra prender balanço
ou se pra alguém que perdeu o embalo

sobre as células mortas que se debruçaram[sobre o nosso corpo [sobre a pele

eu primeira pessoa do singular
descubro em plena aula de biologia
que nossos morfemas corporais
vivem estabelecendo planos de fuga
através de quem morreu antes
e está preso na superfície
não há como estilhaçar a casca
e não se aniquilar
a pele é esse azulejo não cimentado
em processo de autoassassínio
matador invisível suicida
de todos os outros
que se protegem do guarda-chuva
quando chove
nesse sismo centimetral
cismo sentimental
dúctil afetivo-composto
imediatamente abaixo da capa desdobrada
por cima daquilo que parece fresco
dos aspectos meteorológicos da vida
só sei que os escombros pós-terremoto
não previnem pupilas tristes e sem entranhas
a amora da infância
já esmagada pelas catástrofes do cotidiano sangra
e tinge de púrpura a brecha entre o grifo tatuado
e a tranquilidade tela subcutânea
de quem está prestes a morrer
quando respirar pela primeira vez
cravo um resmungo na menor partícula significativa do meu corpo
protesto contra o abuso de autoridade da libido
e a teimosia epidérmica em se rasgar ao mínimo sinal de sol
esse tecido que reage à presença de oxigênio
e se regenera a cada combustão fúnebre
para quem se levantou primeiro
um tapete quebradiço e opaco
que não se manifesta em fusos horários nórdicos
mas sabe muito bem como rebobinar a vida de uma lagarta
é isso
tenho um pedaço de manequim para cada poema que faço
e problemas com quem chega muito perto
encostar na pele de outro sem querer
corrói a primeira tensão invisível
quase como quando descobrimos a própria sombra ainda crianças
ou perdemos o medo de asas que não são as nossas
ou assistimos um tutorial para aprender a comer alcachofras
nessa perícia involuntária do coração
que é essa faixa de pedestres que ninguém respeita
a arritmia reciclável e o compasso desconfiado
se transformam nos parasitas da vida
que acontece no intervalo
entre as partículas e a poeira
há pétalas em festim coadas
para que façamos um bom café
será orgânico
e hipnótico
e agridoce
e tempestádico
e saltitante
este é o punhal com gosto de confissão
soprada em voz alta
suspensa acima daquilo
que está imerso
e parece uma parede em branco
mas só parece
porque ela é transparente
e leva a cor que damos ao espelho
e hoje parece azul
e amanhã não falaremos mais sobre isso